segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Voyeurismo de apartamento

Fumávamos um filtro vermelho e olhávamos as outras cores, as que estavam além da tela da sacada. Considero a sacada o paraíso dos voyeurs urbanos – aqueles cujos olhos adoram concreto e os ouvidos poetizam buzina, motor e o vazio barulhento da cidade cheia. Sobrevivendo entre óleo e fumaça, árvores costuravam o asfalto até o fim da avenida. Meu amigo comentou maravilhado sobre as árvores, como se fosse um grande motivo pra se alegrar. E é. Gosto de estar na presença de quem também é apaixonado por contemplar. Talvez eu não confie na humanidade de quem não sente alguma coisa lá no fundo ao olhar pro mundo que o cerca, pra rotina que o prende.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cigarro



Antes de tudo, queria agradecer ao tempo nublado e à chuva por me trazerem de volta a vontade de escrever. 

Eu estava tentando parar de fumar, mas percebi que não consigo. É feio falar, dizem que não pode, o certo é repetir: “eu vou conseguir, vai ser bom pra mim, blá blá blá”. Mas a minha necessidade de ocupar minha boca com algo que não seja palavras é mais visceral que meu senso de autopreservação. Aliás, ocupar minha boca me preserva mais do que salvar meus pulmões. O cigarro difícil de deixar não é o que rega as conversas, é o que substitui o silêncio, o que faz companhia, o que alimenta o hábito da fuga e do alívio, não o que alimenta o vício. O foda não é a nicotina, o alcatrão, o difícil de deixar é a fumaça, o trago e toda a estética que concretiza sua poluição interna.  Cada bater de cinza representa algo que eu deveria conseguir deixar ir e não consigo, e cada trago algo que eu deveria trazer pra perto.

Sinto muito, dentes, garganta, pulmões, mas minha necessidade maior é a de me manter sã, mesmo destruindo vocês pra isso. Mas, paciência, não é assim que praticamente tudo na vida funciona? Não dá pra salvar tudo e algumas pessoas optam por sacrificar o que faz bem a elas de maneira mais óbvia. Eu sou uma dessas pessoas, mesmo não me orgulhando disso. Não classifico como autodestruição, talvez seja apenas o retrato de que cada um tem seu jeito torto de sobreviver, inclusive acelerando o processo de morrer.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Novamente, Bukowski

"[...]Eu era pior que qualquer puta; uma puta só toma o seu dinheiro, nada mais. Eu bagunçava vidas e almas como se fossem brinquedos. Como é que eu ainda escrevia poemas? Eu era feito de quê, afinal? Eu era um marquês de Sade pangaré, sem o gênio dele. Qualquer assassino era mais sincero e honesto que eu. Ou um estuprador. Não queria botar minha alma em jogo, não queria vê-la exposta a deboches, sacanagens. Sabia muito bem disso tudo. Eu não prestava, essa era a verdade. Podia sentir isso, andando de lá pra cá no tapete. Não prestava. E o pior é que eu passava pelo contrário do que era: um bom sujeito. Eu entrava na vida dos outros porque eles confiavam em mim. Eu aprontava as minhas cagadas com a maior facilidade. Eu estava escrevendo a história de amor de uma hiena."

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Perder a paz



Ele tomou uma garrafa de vinho deitado no sofá, ouvindo Bethânia. Sentia saudade não sabia do que, de quem. A noite estava tão quente. Será que lá fora estava melhor? Não tinha ideia, fazia tanto tempo que não ultrapassava as fronteiras físicas daquela kitnet suja. Nos pensamentos, não parava lá dentro.

Ele já tinha várias certezas inúteis, elaborou todas pensando sobre coisas inúteis, enquanto, no seu isolamento, se esquecia de como se vive funcionalmente. Seu celular tocou. Ele não se lembrava de que tinha um celular. O toque era um sambinha animado, que conforme foi tocando, fez seu coração acelerar, desesperado. Ele silenciou a ligação, nem pensou em atender seu amigo Tiago (ou seria ex-amigo? Não se viam há tanto tempo!). Ah, antes que eu me esqueça, como ele quase já havia esquecido: seu nome é Lázaro. O que aquele toque havia feito com Lázaro? Simples, o fez lembrar de que ele já sambou, no mundo lá fora, com gente lá fora. Lázaro já sambou. Lázaro foi feliz.

Ele foi até a sacada, olhou as pessoas andando lá embaixo, os carros. Risadas, conversas, buzinas. Ficou um pouco tonto, mas foi seduzido por aquele fuzuê. Colocou uma calça jeans, dez reais no bolso, seu all star vermelho e disse pra si mesmo que iria só comprar um cigarro no bar da esquina. Dentro do elevador, olhava os números mudarem com uma atenção quase mórbida. Conforme os números decresciam, a ansiedade aumentava. 5. E se encontrasse alguém conhecido? 4. Fazia tanto tempo que não tocava uma mulher. Teriam muitas mulheres no bar? 3. Preocupou-se por estar mal vestido, todos o veriam como um trapo. 2. Por isso é difícil sair, olha que merda. Você sai pra comprar um cigarro e no mínimo dez pessoas vão te fuzilar com os olhos, te reprovar, te rejeitar, na cabeça delas, como se você fosse uma figura indigna de empatia. 1. Não devia ter saído de casa, pensou. Foi a pior decisão possível. Térreo.

“Boa noite, Lázaro! Resolveu sair da toca?”,  gritou o porteiro, de dentro da guarita. “Boa noite”, respondeu baixo, sem nem olhar. Deu passos afobados até o bar, mas seu rosto refletia alguém que parecia não ter vida. Parecia. Lázaro tinha uma vida, a qual começou a questionar no momento em que ouviu seu celular tocar. Entrou no bar. Chegou ao caixa e ficou parado, olhando pro mostruário de cigarros. “Posso ajudar?”. Era uma mulher bonita, da voz gentil, devia ter uns trinta anos. “Um Marlboro, por favor”. Lázaro parecia ter acabado de acordar, apesar dos olhos atentos. Tinha um tom melancólico e alheio, qualquer um perceberia.

- Eu não tenho fogo, esqueci o isqueiro em casa. Tem aqui? – perguntou pra mulher do caixa.
- Claro. Aqui!
- Vou lá fora acender.
- Pode fumar aqui. Vai beber alguma coisa?
- Não, vim só dar uma olhada. – soltou sem ver, talvez sem imaginar como isso soaria pra uma outra pessoa. 
- Dar uma olhada no quê? – perguntou rindo a mulher.
- Ah, nada... O tempo, pessoas... – acendeu o cigarro.
- Ah, sim. Como é seu nome?
- Lázaro.
- Eu sou a Carmen, Lázaro. Se quiser uma cervejinha ou outra coisa, é só pedir.

Lázaro só sorriu. Ficou ouvindo as pessoas, cada mesa tinha uma conversa diferente, e todo mundo parecia falar ao mesmo tempo. “Onde eles arrumam tanto o que falar?”, falou baixo. Estava acostumado a conversar sozinho em casa, mas do outro lado do balcão estava Carmen, que ouviu.

- Como?
- O que?
- Você falou alguma coisa.
- “Onde eles arrumam tanto o que falar?”. Tava pensando alto, desculpa.
- Eles?
- As pessoas. Enfim... – acendeu outro cigarro.
- Todo mundo tem muito o que contar.
- Mas acaba não contando. Quando outra pessoa não está ouvindo, você tá só verbalizando, não tá contando nada. E ninguém ouve. Tá todo mundo falando ao mesmo tempo.
- A história da gente sempre é mais interessante pra gente. Às vezes, só pra gente. Eu li num livro, uma vez, que enquanto o outro fala, a gente tá é pensando no que vai falar. Já reparou nisso?
- Não. Não ando conversando muito.
- Cansou de verbalizar pra ninguém ouvir?
- Eu só... Eu só não vejo sentido. As pessoas fazem tanta coisa. Tanta coisa que, se você parar pra pensar, não faz sentido. A gente atravessa o dia fazendo coisas, pra chegar em casa e nada fazer sentido. Nada preenche, vai ficando tudo vago, tudo... Tudo em branco.
- Mas por que as coisas precisam de um sentido?
- Se elas não fazem sentido, elas geram angústia. E fazer sentido ou não, só é uma questão pra quem está infeliz. Quem está feliz, não se preocupa com o sentido da coisa, a coisa basta.
- E o que faz alguém ser feliz?
- Já me perguntei isso todos os dias, por muito tempo. Agora eu só aceito:  algumas pessoas são felizes, outras não.
- Você é feliz, Lázaro?
Lázaro sabia que não, estava cansado de saber que não. Mas quando Carmen perguntou, doeu. Doeu por que, quando outra pessoa pergunta, a resposta importa. Quando você responde para OUTRA pessoa que é infeliz, você está CONTANDO que é infeliz, não apenas tomando consciência disso.  Respirou fundo, com os olhos fixamente direcionados para a o cigarro em suas mãos.
- Acho que ninguém que sai de casa pra fumar um cigarro e ouvir conversas alheias é feliz.
- Você não tá ouvindo conversas alheias mais.  Você tá falando comigo. – Carmen colocou a mão no ombro de Lázaro, que pela primeira vez olhou para ela de verdade. Com um sorriso de mulher que sabe da vida, ela continuou falando. – Olha, rapaz, a gente realmente vive num mundo que parece estar correndo enlouquecidamente pra lugar nenhum, mas a gente não precisa correr, a gente não precisa chegar em lugar nenhum. A gente precisa de paz, de dar voltas, se perturbar, e então dar mais voltas pra ficar em paz de novo. A felicidade é superestimada, só por isso doi não tê-la. A propaganda é falsa, acredite. Não é isso tudo ser feliz. Mas ter paz é tudo. E perder a paz também é tudo. Você vai usar o sentido das coisas pra fazer o que? Você tem que SE usar. O sentido das coisas é delas... Seu, é só você. O que cabe a você, é você. Pode ter um vácuo de sentido em tudo que a gente faz, mas se a gente faz alguma coisa, a gente se livra do vácuo de nós mesmos.

A cabeça de Lázaro estava a ponto de explodir, pensava em tanta coisa, sentia tanta coisa. O borbulho de pensamentos foi exterminado por um abraço. Que abraço! Nos braços de Carmen, Lázaro chorou. Não se precisa de sentido, quando se tem um abraço. Lázaro foi liberto: Carmen exorcizou sua alma de um demônio que, de alguma forma, ela parecia conhecer bem. Que demônio é esse, ninguém sabe ao certo, e agora, ninguém quer saber. Pelo menos, não Lázaro. 

Chegou um cliente ao caixa e Carmen foi atendê-lo. Lázaro colocou o cigarro no bolso e caminhou até a saída do bar. De lá, olhou para Carmen e os dois trocaram um sorriso, era um agradecimento mútuo. “Obrigado por ter me ouvido”, era o que a troca de olhares dizia. 

Deixando o bar e as pessoas que verbalizavam simultaneamente sem parar para trás, Lázaro caminhou de volta para casa carregando a sensação do abraço de Carmen. Nessa noite, criou outra certeza, talvez não tão inútil: não é uma injustiça a felicidade alheia, nem a sua infelicidade; não há motivo para se sentir vazio, quando não existe a necessidade de se preencher de sentidos. De agora em diante, Lázaro sabe que só precisa perder a paz mais vezes.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Faça como o vento

Acordei. Olhei pro teto, fechei os olhos de novo, um vento fresco entrava pela janela e me tocava com carinho. Fui lavar o rosto. Enquanto eu me encarava no espelho do banheiro, desgostando da pessoa que eu via refletida, o celular tocou no quarto.

- Oi, mãe.
- Bom dia, filha, acabou de acordar?
- Aham.
- Já comeu?
- Não, eu acabei de acordar.
- Seu primo sofreu um acidente.
- Que primo?
- O Eder. Dormiu no voltante, voltando de uma festa.
- Onde ele tá internado? Foi grave?

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, que responderam por ela. Meu primo está morto.

- Puta que pariu, mãe. Ele...?
- É. Pra você ver como que é a vida. Na minha última conversa com ele, ele falou de você. "A Amanda é muito gente boa, tia, nunca vi uma menina fácil de conversar igual ela."

De fato, conversei muito com ele nas férias. Bebemos, jogamos truco e falamos até sobre mulheres. Ele, católico, sem nenhum problema em estar sentado num pesque e pague do interior, onde todo mundo o conhece, com a prima sapatão. Eu não sei lidar com mortes. Quem sabe, afinal? Não é um problema que se pode solucionar, nem um fato que outro fato amenize. A morte é um minuto de silêncio eterno. Fui até a janela, precisava do mesmo vento que me tocava quando acordei. O vento estava igual, ainda está... Mas agora eu o sinto diferente. Senti raiva de estar um clima agradável, como se fosse um desrespeito ao meu luto. Então, me lembrei do meu poema preferido, que Ferreira Gullar fez para Clarice Lispector, quando ela morreu.
"Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós"
Ainda bem que não dependem. 
Vá tranquilo, vá tranquilo pra lugar nenhum, primo, pois, aqui, o vento ainda sopra como quem não tem pressa.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Drama



Meu deus! Eles se reencontraram. Foi da forma mais casual possível: numa loja dessas de discos, livros e etc. Eles já haviam estado lá muito tempo atrás... juntos. Pedro tinha em mãos um livro do Freud, uma caixinha daquelas bonitinhas, usadas pra por presentes e um CD do The Raveonettes. Alex logo pensou: “ele está apaixonado”.
- Oi!
- E aí, Pedro?
- Comprando filme? – Pedro nunca fez, em toda sua vida, uma pergunta com tanta naturalidade. Era como uma pessoa extremamente educada puxando assunto com um ex-colega do cursinho de inglês.
É incrível o comportamento humano, é incrível o fluxo da vida. A mesma pessoa que você apresenta pros seus amigos como “meu namorado”, alguns dias, meses, anos ou décadas depois, é um conhecido com quem você se esbarra em algum lugar por aí. Vocês já trocaram segredos, fluidos, gemidos, presentes, declarações, promessas. Agora vocês trocam um olhar de formalidade, como quem quer dizer que tem maturidade e está bem, como se acreditassem que tudo passa.
- Pois é, tá cheio de drama em promoção... Quer dizer, filmes, no geral... É que... Você gosta de drama, eu acho. Tem drama. Tudo doze e noventa.
- Nem vejo drama mais, acredita?
- Acredito – e sorriu forçado.
Não, Alex não acreditava. Pedro sem ver drama? Ele tinha todos os filmes do Walter Salles, como não vê mais drama? Quem ele quer enganar? Ele está se enganando, se acha que não gosta mais de drama.
- Pois é. Como que tá lá no jornal? Escrevendo muito? Esses dias, vi que uma matéria sua foi capa, parabéns!
- Eu saí do jornal.
- Sério?
- É, aquela foi minha última matéria pra eles – Alex não conseguia mais disfarçar o desconforto. “Que conversa idiota”, pensou.
- Ah, sim... Então, cara, vou pra fila do caixa, pagar isso aqui. Bom te ver!
- Vai lá, até mais.
Alex foi pra seção de literatura estrangeira. Estava a caminho do caixa quando encontrou Pedro, mas não ia ficar na fila com ele, os minutos constrangedores durariam uma eternidade. Sem contar que, mais alguns segundos, e falaria “espera aí, depois você termina de comentar sobre o tempo, queria te falar que você sem barba fica horrível e que essa pulseirinha que você tá usando é ridícula, além do mais, que voz irritante você tem, e em cinco anos de namoro, eu nunca tinha percebido como você é chato e forçado, puta que pariu...”, e por aí vai. Pedro, no caixa, se perguntava se Jorge iria gostar da caixinha que comprara pra ele. No caminho pra casa, lembrou dos filmes do Walter Salles, decidiu que voltaria a assistir drama. Será que Jorge assistiria com ele, como Alex fazia?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Buracos e mais uma madrugada


Mais uma noite eu tranco a porta do quarto, apago a luz e escancaro a janela. Eu fico na cama deixando o vento frio desse Agosto amargo bater no meu corpo, na tentativa de sentir algo que não seja um vazio que me corta de ponta a ponta. E é um vazio tão cheio de coisas. Coisas com as quais eu não sei o que fazer. Como saberia, se eu não sei nem que coisas são essas?
Chega um momento em que o combo de diagnósticos que você recebeu se torna um peso morto, uma bola de chumbo presa ao seu calcanhar. O que sobra da vida, quando você redescobre a cada segundo que ela é um amontoado de casos e causas perdidas, é o que há de mais asqueroso. Com o evoluir da madrugada, além do cinzeiro, enche-se também o quarto, que fica abarrotado de fantasmas e de antecipações. E o pior: minha vida se enche também, se enche dos buracos que eu cavo buscando respostas.